A Cia. Do Feijão apresentou na Mostra de Coletivos Teatrais do SESC – Santos o espetáculo “Nonada”, que narra as desventuras de um desmemoriado aprisionado em um eterno purgatório. Na conversa com Zé Ernesto Pessoa e Pedro Pires eles falaram sobre os processos e interesses temáticos e estéticos da Cia. do Feijão.


Zé Ernesto Pessoa, Direção e dramaturgia.

Pedro Pires, mesma coisa que o Zé Ernesto só que ao contrário.

Teatro do Pé – O que é a Cia. Do Feijão?
Pedro –
Bom é uma cia. que já vai fazer 10 anos no ano que vem. É uma cia. que alia a pesquisa de linguagem à criações relacionadas ao nosso mundo de hoje, questões que nos tocam, que nos incomodam, e ao longo de todos esses anos, a gente pesquisou vários temas relacionados ao Brasil, desde de temas sociais, sócio-políticos… A gente não trabalha com textos originais de teatro, a gente cria os nossos próprios textos, também baseados numa linguagem que é a da narrativa, do teatro épico.

Pé – Essa dramaturgia de vocês é de gabinete ou fruto do processo?
Zé Ernesto –
Todo o tempo ela é produzida em espaço de ensaio. Evidentemente, tem algumas necessidades que são enxertos feitos, mas eles sempre entram depois desse texto ter brotado de um processo de ensaio entre os atores. Dá pra dizer que uma grande parte da dramaturgia é dos atores também, durante esse processo de criação.

Pé – Quais foram as montagens do grupo?


Pedro – Bom a primeira montagem do grupo é o “Movido a Feijão” de 98, que é um espetáculo em cima dos catadores de lixo. Depois fizemos “O ó da Viagem” que foi feito à partir de uma viagem nossa pro Nordeste, dos diários de Mário de Andrade. Depois “O Antigo 1850” que é um olhar nosso sobre a periferia da cidade de São Paulo, esse é de 2001. Depois tem o “Mire e Veja” que é um espetáculo sobre a cidade de São Paulo, o coração da cidade e os personagens que saem de dentro dessa multidão que habita a cidade de São Paulo. O “Reis de Fumaça” que é um espetáculo de rua onde experimentamos essa questão do teatro de narrativa na rua. Que também é uma pesquisa em cima de depoimentos que coletamos ao longo da nossa história, da realidade dos brincantes, dos fazedores de cultura popular. E depois o “Nonada” que agente apresentou aqui, que é uma pesquisa em cima da literatura brasileira, de várias épocas, de vários períodos… E em “Nonada” nos inspiramos em Machado de Assis, Clarice Lispector e Mário de Andrade.

Pé – Vocês têm esse jeito de falar sobre o que incomoda vocês. Como é que surgem os temas dos espetáculos? Como é que eles surgem no processo?
Zé Ernesto –
É eles brotaram, meio que naturalmente, da nossa observação do homem brasileiro. Quem é esse cara? Esse cara que somos nós, pedaços de nós! Em que lugar esse brasileiro vive? E ai, mais diretamente, é isso o que o Pedro falou. Quer dizer, as coisas que nos incomodam, mais do que a lamentação, a gente trás para o nosso processo de trabalho. E não quer dizer que é o final, que quando ficar pronto o espetáculo a gente vai ter uma resposta! Mas você pondo o fantasma na sua altura fica mais fácil de negociar com ele.

Pedro – E, outro dado só, é que um espetáculo acaba levando ao outro. Um espetáculo puxa um fio que vai levar para um próximo tema que você desvenda, você vasculha… e esse tema te levanta outras questões, outros temas que daí a gente vai. Até por isso que agente fala que o “Ó da Viagem”, “O antigo 1850” e “O Mire e Veja” formam uma trilogia. Talvez o “Nonada” esteja inaugurando uma outra trilogia, ou não, não sabemos…

Pé – O “Nonada”, nas matérias que eu li a respeito, falava que a fonte da pesquisa de vocês é um ensaio, uma elaboração do Roberto Schwartz, sobre o que ele chama de “modernismo conservador”, que o Brasil não importa pensamentos, mas os aplica de uma forma ornamentada. Gostaria que vocês falassem sobre o que atraiu essa temática?
Pedro –
Na verdade o Roberto Schwartz, com a modernização conservadora, é um dos primeiros brasileiros que começa a investigar, dentro da literatura brasileira, mais do que simplesmente a literatura. Ele começa a ler o país através desses grandes autores, principalmente de Machado de Assis. Que segundo ele, no século XIX, já tinha diagnosticado qual era o problema fundamental do Brasil. Ou seja, o Brasil é um país que se moderniza conservando. Conservando instituições arcaicas, uma maneira de relação entre o público e o privado, entre as pessoas, e que na verdade vem dessa relação que existia na época da escravidão. Ou seja, na escravidão a gente tinha os senhores, os escravos, que não tinham autonomia nenhuma, e uma grande classe de homens que eram chamados de homens livres pobres. Ou seja, eles não eram nem proprietários, e nem eram os trabalhadores, por que o trabalho era uma coisa de escravo no Brasil. Era uma coisa que denegria o ser humano ser um trabalhador. Então quer dizer, você tem esse miolo ai, essas pessoas que estão nesse meio, que vivem do favor dos senhores. E como eles não podem vender sua força de trabalho no mercado, como eles faziam na Europa, no liberalismo europeu, eles viviam do favor desse senhor. Então, se eles caíssem na desgraça desse senhor, eles estavam fritos, eles não tinham como sobreviver. Então você pega mesmo um advogado, um médico, se ele não tivesse algum laço com algum proprietário que tinha grana, ele estava perdido. Então, essa é uma questão importante para entender o porquê de “modernização conservadora”? Por que o Brasil no século XIX se dizia uma nação liberal, quer dizer, importava essas idéias do liberalismo europeu, só que toda a produção do Brasil era baseada em mão de obra escrava. Então, que liberalismo é esse, onde você não tem um mercado de venda da força de trabalho? Então, a partir desse momento, foram sendo feitos grandes arranjos no Brasil para manter a elite no lugar dela e os outros todos meio que dependendo da elite, direta ou indiretamente… Quer dizer, até esse capitalismo que a gente tem hoje, segundo os teóricos, é até um capitalismo super avançado. Por que o ideal do capitalismo é isso, é dominar e não ter mais ninguém embaixo para oferecer resistência. Então, tem até umas pessoas que dizem hoje que a vanguarda do capitalismo já estava nesse modelo do século XIX do Brasil. Quer dizer, sem oposição! O capital com a força plena e nenhuma oposição. Que durante um bom tempo houve por causa dos países comunistas que criavam uma tensão… Quando acabaram os países comunistas, o capitalismo assumiu essa hegemonia, e o mundo inteiro está se brasiliarizando, vamos dizer assim.

Pé – E aí? Esse conjunto de interpretações, eles para virarem cenas, para virarem teatro, como isso funciona?
Zé Ernesto –
Eu acho que uma das chaves; é claro que são muitas abordagens, mas eu considero uma das mais preciosas, a gente como personagem dessa história. Nós estamos falando do Brasil no século XIX, mas querendo ver o que do século XIX está aqui ainda. E nesse aspecto a memória dos atores, e de nós de fora, mesmo quando a gente entra. Isso é muito importante! Como isso bate em mim hoje? O que da minha vida eu poderia relacionar com esses princípios e com essas leituras. E dai, é um leque muito aberto que agente vai fechando e vendo o que tem interesse cênico. O que funciona e o que não funciona, segundo a nossa lente.

Pé – Vocês trabalham também a questão do narrador. O que é o ator narrador pra vocês?
Pedro –
Olha o ator narrador, é aquele que não é uma peça do espetáculo. Uma peça alienada! Ele é uma peça por inteiro. Quer dizer, ele está contando essa história, e por todos estarem contando, todos fazem parte do espetáculo inteiro. Que é diferente de um ator que vai lá fazer um papel, ele entra na hora dele e sai, e está fechado. Isso é uma das dimensões. A noção do narrador é aquela de quem conhece a história de cabo a rabo. Então ele domina essa história, e ele pode até comentar essa história, ele vai comentar essa história. Quando ele for fazer um personagem, ele não vai fazer um personagem “neutro”, por que nem existe o neutro, de certa forma você está tomando um partido. Então, ele está fazendo com consciência. Ele está fazendo analítica e criticamente aquele personagem. Então essa é uma das dimensões do porque da narrativa. E outra coisa é que, para falar de grandes temas, você não pode ir para o teatro dramático. O teatro dramático dá conta de um conflito familiar ou pequeno, e como agente está trabalhando no presente de hoje, mas vendo o passado e a nossa história como fonte, o narrador ele permite esses paralelos entre tempos, ele atravessa o tempo. Então daí a importância dele também!

Pé – Hoje eu ouvi um comentário, que eu achei bem bonito, que é assim: “O narrador é aquele que viveu e vem contar!” e ai vocês recolhem as narrativas de outras pessoas para construir os espetáculos. Que papel tem a narração hoje no cotidiano? Vocês conseguiram identificar, nas próprias pessoas, como elas utilizam a narrativa em sua vida cotidiana?
Zé Ernesto –
Eu acho que isto está diretamente relacionado aos encontros! Existe uma grande dicotomia, que está presente agora na nossa próxima criação, que está em processo agora, que é a questão do Individual vs O Coletivo. Você quer o melhor para a sua vida ou você quer o melhor para a sua coletividade? Ou para o seu país? Podemos ampliar… E o que está na base do narrador mesmo, quer dizer, a capacidade de você recontar uma história que você ouviu, que você presenciou – não precisava ter vivido, necessariamente, mas você pode ter ouvido; – Reinventando essa história! Por que basicamente o narrador podia ser aquele que estava parado, e via e ouvia os viajantes passando e contando suas histórias, e ele recontava isso. Ou o viajante em trânsito, vendo e ouvindo histórias de muitos lugares, e também na hora que ele vai contar, já não e mais aquela mesma história que ele ouviu ou presenciou, já está filtrada por ele. Eu acho que essa capacidade dessa fragmentação toda desse mundo que agente vive hoje, se perde em grande medida. “Honrosas ilhas de resistência”, e a gente espera ser uma delas!

Pedro – E tem essa questão do narrador com o ouvinte dele. Ele está transmitindo uma experiência, e o mundo de hoje carece dessa transmissão de experiência. Como é tudo mercadoria, é tudo rápido, é tudo consumo… Consumo não é experiência! Ou é uma experiência meio, vamos dizer, a lá cocaína, aquela experiência que quando termina o efeito da droga, você precisa de mais, é um fetiche. E a experiência de duas pessoas, uma contando uma história para a outra, é uma coisa que fica para o resto da vida na pessoa que ouviu, e dependendo das reações da pessoa que ouviu, a que conta também está se transformando, está se questionando, se vendo, se ouvindo. Então, quer dizer, isso é uma coisa que pros dias de hoje, acaba indo para um outro lado, para o fetiche, para uma satisfação rápida, porque você precisa de outro, de outro, de outro… E não tem nada que fique mesmo, que vá para o ser humano e que enriqueça a experiência de vida dele.

Pé – Isso me remete àquela teoria “Em busca do tempo perdido” do Proust. Que ele diz que quando a gente passa pelo presente, a gente não vive a experiência plenamente. A gente só vai revivê-la quando contá-la, por que ai você seleciona o que é importante, o que é imprescindível.

E para terminar, uma pergunta de interesse dos coletivos teatrais, vocês tem um espaço agora. O que esse espaço está proporcionando pra vocês em trabalho?
Pedro – Bom, desde 2004, agente está com um espaço lá em São Paulo, do lado do Teatro de Arena Eugênio Kusnet, que aos poucos agente foi conseguindo montar, graças muito à Lei de Fomento ao Teatro da cidade de São Paulo, que nos possibilitou um grande avanço de tempo e de dedicação para as nossas pesquisas. E logicamente o espaço, que inicialmente era um espaço de ensaio e de pesquisa para agente estar experimentando, e que com o “Nonada” no ano passado, ele se tornou um espaço de apresentações. Não é um teatro tradicional, vamos dizer que não mantemos um repertório de vários grupos convidados, por que ao mesmo tempo ele é o nosso espaço de trabalho e agente não quer tirar o foco de nosso trabalho para se tornar um gestor de espaço simplesmente. E acho que a partir desse ano agora, que agente está passando por uma finalização no período de criação, talvez agente comece a colocar outros grupos também se apresentando lá dentro. Mas é fundamental esse cuidado, é que nem a sua casa! Já pensou se a cada dia você vai dormir em um lugar? Você não tem lugar pra criar suas raízes.

Pé – Qual é o próximo trabalho que vocês estão pesquisando?
Pedro – O tema da pesquisa é “Por que a esquerda se endireita?”. E são os últimos 40 anos do Brasil, desde o golpe de 64, mais ou menos, até hoje. E estamos trabalhando em cima desse tema, e trabalhando muito com nossas memórias pessoais e dos próprios atores. Porque todo o mundo viveu nos últimos quarenta anos. O Petrônio integralmente, e outras pessoas em partes maiores ou menores. Então estamos trabalhando: O que aconteceu nesses 40 anos que a gente está nesse beco sem saída hoje? Vivendo essa sensação de angústia, porque enfim, os muros estão se abrindo, o chão está abrindo, os aviões estão caindo. Então, agente está nesse miolo, nessa panela de pressão, e estamos cozinhando essa carne para ver o que vai sair dela.




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1 Comentário para “Entrevista com Zé Ernesto Pessoa e Pedro Pires – Cia. do Feijão”

  1. 1 Beth Freire

    Eu achei bem interessante essa entrevista,já a algum tempo planejo pesquizar sob a Cia do Feijão,porque eu já os vi em São Caetano e fiquei curiosa e com interesse de conhecer de perto o trabalho da Cia.
    Eu faço cursso de teatro na Fundação das Artes em SC e gostaria de ter aumenos um dia com eles.

    Grande abraço!