Comunico aos nossos leitores que o conteúdo dessa entrevista tem um valor inestimável e atemporal. Inestimável por revelar a riqueza ao mesmo tempo conceitual/formal e dinâmica do trabalho da Fraternal Cia. de Artes e Malasartes e atemporal por que pode e deve ser lida a qualquer tempo sobre qualquer época e dessa forma minimiza a nossa lentidão em publicar essa entrevista que foi realizada no dia 20/07 durante a Mostra Sesc de Coletivos Teatrais

Entrevistados:

Ednaldo Freire – Diretor;

Luís Alberto de Abreu – Dramaturgo

Aiman Hammond – Ator

Mirtes Nogueira – Atriz

Edgar Campos – Ator

Teatro do Pé – Por que esse nome de Fraternal Cia. de Artes e Malasartes?
Ednaldo –
O nome Fraternal é uma homenagem às antigas organizações de Commedia Del Arte que chamavam-se Fraternais Companhias. Então a gente achou que tinha muito a ver, na ocasião em que estávamos criando o projeto de comédia popular brasileira. E a idéia da Fraternal é essa idéia mesmo de grupo, essa idéia de fazer as coisas coletivamente.

Pé – O que é a Fraternal artisticamente? O que ela faz?
Ednaldo –
É uma Cia. de pesquisa de teatro, de preferência comédia popular brasileira. Mas é um grupo também curioso que não sabe de nada ainda, e que está procurando correr atrás de uma poética brasileira. A gente nunca está satisfeito, está sempre inquieto. E, temos uma trajetória de 12 anos, com um repertório fantástico; e o repertório reflete de certas maneiras essas inquietações nossas.

Pé – De onde vem esse interesse pela comédia popular brasileira?
Abreu –
Eu e o Ednaldo temos uma história muito antiga, já como amador ainda. E o Ednaldo sempre teve um viés para o teatro cômico, e acho que tem um pouco a ver até com a nossa própria história. Uma história de periferia, de imigrante, de cultura popular, né? E numa certa altura da vida, a gente se juntou para começar a desenvolver esse trabalho de pesquisa mesmo. Um pouco, relatar a visão cultural e artística da nossa própria formação. E foi um pouco por ai… E a partir daí a gente começou a estabelecer um projeto, esse projeto de pesquisa da cultura popular brasileira, mais especificamente, da comédia teatral. E daí que vem a nossa pesquisa.

Pé – As pesquisas de cultura popular, geralmente, têm pesquisa de folclore, de tradições, e tem uma série de rótulos e nomenclaturas, e vocês têm essa peculiaridade da comédia popular brasileira. E eu confesso que nunca tinha visto uma pesquisa, seja artística ou acadêmica, como essa… Vocês têm alguma idéia do grau de ineditismo da pesquisa de vocês? Como ele se insere dentro do cenário artístico?

Abreu – Ineditismo? Não sei! O Suassuna já fez isso. O Gil Vicente já fez isso. Se há um ineditismo ai, pode ser primeiro pela opção, a opção por esse universo da cultura popular brasileira, segundo a da comédia, e terceiro pela pesquisa continuada disso. Talvez isso seja inédito.

Ednaldo – Também tem um pensamento que eu acho interessante que diz o seguinte: “Ser original não é criar coisas novas, ser original é buscar a origem e beber na fonte dessa origem, e recriar.”; E talvez o ineditismo nosso esteja na recriação mesmo, nessa recriação sempre constante. Então, você fala tradição, fala folclore, e isso nos cheira a mofo. Nós temos um reconhecimento nas formas dramáticas, nas danças dramáticas brasileiras. Mas nós não temos um reconhecimento dentro dos focos de tradições, por que esses focos geralmente são reacionários. São aqueles que querem conservar a cultura dentro de uma geladeira. Engessar somente para a admiração de vitrine. Enquanto que a cultura popular ela é dinâmica, ela se transforma. Então percebemos, por exemplo, que se existe o caboclinho, o caboclinho não é folclore por que ele é realimentado, e de repente um conjunto musical como Mestre Ambrósio, por exemplo, pega e recria isso. Vai lá o Alceu Valença e bebe nessa fonte também. Vem quinteto violado, e também… Então ela é dinâmica, ela está sempre sendo comida e regurgitada, no bom sentido oswaldiano mesmo.

Abreu – Na verdade a gente não resgata a cultura popular brasileira, mas a gente dialoga com ela. Ela está ai, está forte, está viva!

Pé – Vocês tem um teatro de texto forte! Vocês têm um excelente dramaturgo no grupo e o processo é colaborativo. Como e que se dá esse diálogo? Senão me engano foi o Labaque que escreveu que está cada vez ficando mais raro, um teatro galgado no texto. Tem muito o teatro galgado em imagens e o texto vem ali, sem querer. Vocês tem um texto forte e dentro do contexto da encenação.
Aiman –
É, ele é o ponto de partida dentro do projeto. Quando agente discute a idéia, e ai discute absolutamente tudo, não só do tema, mas da idéia e a forma de colocá-la no palco, e como concretizar isso tudo, o ponto de partida é a dramaturgia. Não tem saída! O teatro é texto e ator. Isso é fundamental no teatro. Então se você esqueceu um pouco isso no teatro, você esqueceu a base do teatro.

Abreu – Agora, eu não sei se eu concordo muito, não que é um grupo de texto forte. Acho que é um grupo onde há um empenho na busca por um texto forte, mas também é um grupo de encenação forte, de interpretação forte! O que salta à vista, talvez, é que as outras companhias não têm um dramaturgo residente, desde o princípio do grupo, trabalhando ali junto. Acho que essa é uma grande diferença! E ai, o texto aparece porque o dramaturgo está ali junto, não é?

Pé – Quando eu digo texto forte, eu digo no seguinte contexto: Durante muito tempo tinha um texto e se encenava esse texto. Aí passamos por um processo de encenadores, muitos encenadores, e ai o texto vem, se vier, mas a relação é bem mais frágil. E vocês têm um processo equilibrado, com um texto forte, dentro desse contexto onde tem de tudo, mas é equilibrado e de processo colaborativo com uma assinatura.
Aiman –
É sim! Por que o Ednaldo também como encenador, e essa pesquisa da comédia que ele faz há muito tempo, ele também coloca a opinião dele antes do Abreu desenvolver a dramaturgia. Porque ele pensa no público que ele quer atingir, e o que ele quer dizer também. Então ele tem a opinião dele enquanto encenador. E muitas vezes quando o Abreu não pode acompanhar muito o processo, ele se surpreende também com a inversão que o Ednaldo faz da obra dele.

Pé – É a relação que a Commedia Del Arte tinha, não é? Com a relação público e companhia.
Ednaldo –
Existe um ditado ai que diz que as pessoas se aproximam pelas diferenças. Eu acredito que as pessoas se aproximam pelas coincidências, ou por aquelas mesmas coisas que elas curtem, que elas gostam e que ela vão buscar. E isso dá pra virar projeto! Eu não vou me juntar com alguém que pensa muito diferente de mim, entendeu? Eu posso até me juntar, mas pra trabalhar fica muito difícil. Então eu acho que a receita do grupo é essa, as pessoas vão se juntando em busca de um projeto que é meio comum a todos, num determinado momento, em termos de pensamento, pelo menos, respeitando a especificidade de cada um. Ninguém explica por que essas pessoas de repente acabam se encontrando. E o grupo é dinâmico e vem se modificando nisso tudo também. Muitas pessoas já passaram pelo grupo! Pessoas fantásticas, maravilhosas, que continuam amigos da gente, mas o grupo é essa coisa dinâmica. De repente as pessoas vêm se identificando com o trabalho, em alguns aspectos, e vêm somando, não é?

Pé – Vocês trabalham com a questão do ator narrador, e acho que é fruto também da pesquisa com a cultura popular. Então, uma pergunta pros atores. Como é que se dá esse trabalho pra vocês, e como foi a transição de um teatro de representação para um teatro de narração?
Aiman –
É foi um pouco difícil! Por que agente vem de uma escola de representação. Stanislavski impera, não é? Você tem que sentir a dor daquele personagem e tudo mais. Eu sempre tive uma certa resistência com relação ao processo narrativo. E eu sempre adorei muito a comédia. E quando agente de repente se depara com um grupo que tem essa afinidade, a realização passa a ser completa. Agora a dificuldade de você transformar esse processo de representação nessa outra forma, é complicado, é um aprendizado. A gente toma na cabeça sempre! Por que é difícil você colocar em prática, tudo aquilo que você, mesmo já vivendo, essa questão dessa tradição oral, você aprender a colocar isso no palco. Mas é uma maravilha! Depois que você começa a dominar isso, você ver que você é possível fazer um monte de coisas. Criar um exército sozinho! Ai você começa a perceber que o ator tem a possibilidade de dominar a platéia, e fazer exatamente o que ele quiser com a platéia. E ela vai, ela compra! Por que ela sabe que ela está indo lá para ser enganada, que é um jogo e ela vai pra brincar. Então ela aceita, e isso é legal!

Mirtes – Também tem outra coisa que é assim… Quando você trabalha muito tempo com um mesmo grupo, que você tem o dramaturgo no grupo, mesmo o diretor, e um bom período todas as pessoas juntas, atores. O dramaturgo, Abreu no caso, ele já vem estudando o narrativo e o épico já há muito tempo, mas no decorrer dos espetáculos ele foi dando uma crescente pra essa narrativa.

Abreu – Fui experimentando, né? Fomos juntos!

Mirtes – Então você vai também aprendendo junto, fazendo, experimentando, errando, acertando. Tem gente que fala assim: “Nossa! Como é difícil fazer essa narrativa que vocês fazem.”. Mas tem todo um processo que você vem, e pega um pouquinho, e na outra peça vem um pouquinho mais, numa outra ela é verticalizada, entendeu? Então, ela teve um crescimento essa narrativa. E você veio crescendo junto, aprendendo, passando por todos os desafios que a narrativa dá.

Aiman – E quando você faz um espetáculo, depois dá um tempo, e volta com aquele espetáculo, você tem um ganho naquela narrativa também. Isso o que é legal! Porque você tem o aprendizado, a tua vida vai mudando, você vai adquirindo outras experiências que você vai colocando também,vai alterando.

Edgar – E o que me agrada bastante nessa coisa da narrativa, de ter o narrador e tal, é justamente essa variedade que você dá de fazer vários personagens, mas ele tem que ser muito preciso. Por que quando você passa por ator narrador, ou personagem narrando, quer dizer, tem toda essa brincadeira que acontece com a narrativa quando você está fazendo essas coisas, que te prepara pra qualquer outra coisa. Até pra um espetáculo que tenha uma encenação sem utilizar a narrativa. Ele te dá um ganho, por que você desenvolve uma precisão que normalmente você não teria. Você precisa ser muito preciso nessas mudanças de um pra outro, quer dizer… E isso é muito legal! Ele te dá uma prontidão que é interessante.

Pé – Sobre o espetáculo! O que é o “Auto da Paixão e da Alegria”?
Ednaldo –
O Auto é uma grande narrativa que une o sagrado e o profano, assim como une o melhor da cultura erudita com a cultura popular. Acho que a fórmula é essa! Na verdade ali, estão presentes todas as referências e por isso que agrada tanto. Nós temos experiências fantásticas com esse texto! De pessoas religiosas que levantam e saem no meio do espetáculo, até pessoas que fazem caravanas das suas igrejas para ir assistir ao espetáculo. É um mistério, sei lá o que é isso… Mas é uma peça que trata de um tema universal! Nós apresentamos a peça em Portugal e ela funciona do mesmo jeito. E ela tem essa soma da cultura popular que é muito interessante. E essa coisa de tratar o sagrado e o profano como a cultura popular trata. Você pega todas as festas religiosas, pega a Bahia, por exemplo, numa festa de Nosso Senhor do Bonfim, tem as mulheres lavando lá as escadarias, e está acontecendo a oficialidade lá dentro da igreja. Então ela une essa coisa da fé oficial com a fé popular. Acho que o grande segredo é esse.

Pé – O Luis tem uma luta para sistematizar a função do dramaturgo, não é? Para se ter um ensino sistemático disso, certo? Porque existe a escola de músico, a escola de ator, mas não existe a escola do escritor nem do dramaturgo. Como é que você pensa isso?
Abreu –
É! Eu sempre achei que a dramaturgia era uma coisa importante, principalmente porque eu era dramaturgo. Tinha essa coincidência! Hahaha… E na verdade eu comecei numa época que havia um respeito quase que sacralizado à dramaturgia, e logo depois passou para uma época onde o dramaturgo era caçado a pedradas pelas ruas. Ou seja, a negação total da dramaturgia. Eu achava que era uma coisa importante. Eu acreditava que a dramaturgia deveria se disseminar, se multiplicar. Na verdade, ao mesmo tempo em que cada geração gerava dois ou três dramaturgos, no máximo. Cada geração, de vinte em vinte anos. E de repente eu comecei com esse processo de criação de núcleos de dramaturgia, de discutir dramaturgia, e da formação de grupos de dramaturgia. Era uma época que se questionava se o dramaturgo poderia aprender, se poderia ter uma escola de dramaturgia… E eu me perguntava, poxa, porque não? E alguns críticos falaram que dramaturgia não se ensinava! E realmente não se ensina, mas pode-se criar um ambiente propício. Alias, não se ensina ator e nem diretor, mas há um ambiente propício para o desenvolvimento desses artistas. Eu achava que seria a mesma coisa para a dramaturgia! E outro maluco que acreditava nisso também era o Chico de Assis. E durante um tempo, eu e o Chico de Assis, éramos os únicos em São Paulo que tinham núcleos de dramaturgia e que investiam nisso. E na verdade foi uma coisa muito interessante, por que quando eu comecei, não tinha quase dramaturgo, e agora aquela mesma coisa que violonista e músico, você sacode uma árvore e caem dez ou quinze. E é uma coisa muito legal, por que esse trabalho de mais de vinte anos na formação de núcleos de dramaturgia, de tentar colocar a dramaturgia como um dos focos fundamentais de criação, quer dizer, isso aconteceu de fato. Então agente tem uma dramaturgia, principalmente em São Paulo hoje, muito forte!

Ednaldo –E é uma dramaturgia viva! Não é aquela dramaturgia de gabinete. Isso eu acho que é legal! E que trabalha compartilhado com a criação dos grupos! Não é a toa que o Luis Alberto de Abreu não tem, ou talvez tenha somente uma peça que não foi encenada, num universo de quase 50 peças que ele tem. Todas foram encenadas por que elas fossem feitas.




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1 Comentário para “Entrevista com a Fraternal Cia. de Artes e Malasartes”

  1. 1 MADALENA

    Queridos
    Estive ontem dia 20/11 assistindo a peça que esta em cartaz na Fiesp, e tenho a seguinte critica pra vcs sao otimos atores,mas a peça é muito estensa pra uma historia com tão pouco conteúdo,acho deveria ser apenas uma hora de duração ah a peça é a Historia de muitos amores.