Entrevista com Ricardo Puccetti – Lume Teatro
2 Comentários Publicado por Daniel Lopes em 27 de julho de 2007 em Entrevistas, Espetáculos, Geral, Grupos, Teatro, Teatro do Pé.Luis Otávio Burnier, fundador do Lume, já falecido, afirmou : “O ator é, sobretudo e antes de mais nada, preparar seu corpo não para que ele diga, mas para que ele permita dizer”. Quando se fala em trabalho de ator o Lume, grupo surgido e sediado na Unicamp desde 1985, é referência internacional de técnicas preparatórias da arte de atuar, sempre conciliando o compromisso da pesquisa acadêmica com a busca pelo melho resultado artístico. Publicamos aqui a entrevista com Ricardo Puccetti realizada após a apresentação do espetáculo Kavka dentro da Mostra de Coletivos Teatrais do Sesc – Santos, que ficamos sabendo ser a estréia do espetáculo fora de Campinas.
Teatro do Pé – Há quanto tempo existe o Lume?
Ricardo Pucceti – O Lume nasceu em 1985. Então são 22 anos. Eu estou no Lume desde o final de 87, eu e o Simi (Carlos Simioni), que fomos do início. O Simi começou em 85 mesmo, e eu cheguei 2 anos depois. Quem fundou foi o Simi e o Luis (Otávio Luis Burnier). No início era uma coisa bem mais assim… muitos anos só trabalhando em sala, pesquisando. A idéia era de que fosse um espaço para entender e estudar o trabalho do ator. Mas com o tempo a gente foi virando isso, como ponto de partida, mas também viramos uma companhia como as outras. Então tem esses dois lados, por que nós também somos ligados à Unicamp. Por que o Luis, ele morreu quando a gente fez 10 anos. Então, antes dele morrer, a gente conversava que estávamos fechando um ciclo dos primeiros 10 anos. Que a gente tinha trabalhado muito em sala, pesquisando e construindo nossa base de trabalho, de treinamento, metodologia de criação de cenas e tal. E o ator especificamente, tirado da cena, o corpo dele, a voz dele, as potencialidades dele. E que iríamos começar então a pegar esse material e daí que teatro que vamos fazer né? Então nos próximos 12 anos a gente vem fazendo isso. Vem aprendendo e descobrindo a nossa maneira de fazer teatro.
Pé – Vocês são ao mesmo tempo um núcleo de pesquisa e são um grupo de teatro, e os dois com atividades igualmente intensas.
Ricardo – Exatamente! A gente trabalha muito, até por que a nossa sobrevivência enquanto grupo depende do mercado teatral. Por que a universidade ela nos dá a sede e a estrutura administrativa. Mas a sobrevivência dos atores, a produção dos espetáculos e tudo isso é através do mercado teatral. E sempre foi! Sempre foi muito interessante. A gente sempre gostou disso. Por um lado a gente tinha uma base muito boa que, raramente, grupos conseguem ter. Então temos a sede que é um espaço muito bom pra trabalhar.
Pé – E vocês têm uma cobrança teórica por parte da universidade?
Ricardo – Daí tem esse outro lado, que por estar ligado à Unicamp, e também porque o Luís ele tinha um pouco isso… ele queria ir para várias direções, não só o ator, o teatro, o ator no teatro, mas também a coisa didática. Como que a nossa experiência poderia servir como estímulo a outros. Não como método, ou como uma forma assim… mas como um catalisador, talvez, de pessoas com mais experiência, para outros com outras experiências, ou para pessoas mais jovens, para que pudessem descobrir o próprio trabalho. Então teve esse lado da didática. Sempre deu cursos e tal. E tem também esse lado de sempre refletir teoricamente, ou apenas refletir, sobre a nossa prática, e escrever e tal.
Pé – Vocês têm hoje uma série de linhas de pesquisa que estão, mais ou menos, emancipadas há uns 10 ou 12 anos.
Ricardo – É, então! Nesses dez primeiros anos agente abriu algumas linhas. E é claro que tem uma coisa… Na verdade, eu sou, talvez, o menos acadêmico de todos. Não é muito o meu interesse. Eu escrevo e tal, mas até o jeito de escrever é diferente. Então, as linhas de pesquisa, elas foram feitas para falarmos sobre o trabalho. Começamos a colocar… isso é dança pessoal, isso é não sei o que, todas as linhas, pra poder organizar o pensamento e pra passar tudo isso. No fundo, no fundo, tudo se mistura na prática. Quer dizer, um espetáculo como esse, por exemplo, tem tudo. Das linhas que tem nos livros, está tudo ai. Só que não está claramente. Na cara. Até porque os espetáculos da gente cada um tem uma cara diferente, tem estéticas diferentes. Então, todas essas técnicas, essas metodologias, elas não implicam numa estética única. Então você vê esse é uma coisa, você vê um espetáculo de palhaço é completamente diferente. Um de rua com músicas, você pega um butoh e mistura com palhaço, mistura com coisas de mimeses, e etc. Então são caras diferentes! Então, essa coisa dos rótulos, dos nomes, das linhas de pesquisa, servem pra gente explicar por onde a gente transita mais ou menos. Que tipo de ingredientes a gente mistura. Então eu já estou no Lume há 20 anos, o Simi há 22, os outros há 15 mais ou menos. Isso tudo, quando agente começa um trabalho, tudo se mistura. Você não fala, agora vou fazer dança pessoal pra fazer um personagem, e etc. Não é assim que funciona! Nunca teve essa coisa formal. Até muito se falou antes, principalmente no início, como a gente tinha esse discurso de que… ah.. vai pesquisar o ator e a técnica e etc, que nós éramos técnicos. Agente tem técnica, trabalha técnica, mas não é a técnica o que nos interessa. É como o sapateiro que precisa saber a técnica pra fazer o sapato, mas o que importa é o sapato. Se vai servir no pé dele, se estará confortável. Quer dizer, o que a gente faz com essa técnica para chegar no público. Pra dialogar com o público. Esse é o nosso interesse.
Pé – Como é o acesso à pesquisa do momento. Tanto teoricamente, como na prática?
Ricardo – Tem muitas maneiras! Algumas já estabelecidas, por exemplo… Publicamos uma revista, que é normalmente semestral, onde escrevemos sobre o que estamos fazendo, e principalmente sobre o que a gente fez imediatamente antes. A gente faz e depois reflete. Digamos! Então tem a revista, a nossa sede tem biblioteca, tem videoteca aberta ao público, é só ir lá. Funciona como um setor da universidade. Você vai lá em Barão Geraldo, em Campinas e, estejamos lá ou não, funciona do mesmo jeito. Os cursos são um outro modo de acesso. As orientações de trabalho para pessoas que nos procuram, grupos, atores, bailarinos, palhaços, pra que orientemos os trabalhos. E também tem estágios mais longos, diferentes do curso. Os estágios são assim, por exemplo… Eu já fiquei algumas vezes, nesses 20 anos, com grupos que eu permaneci junto entre 3 a 4 anos. E assim cada um de nós. No momento, por exemplo, o Jesser (Jesser de Souza), que veio aqui conduzir a vivência, está dirigindo um espetáculo de dois anos. A Cris (Ana Cristina Colla) que é uma outra atriz, ela dirigiu espetáculos com alunos no ano passado, e ainda continua trabalhando com eles. O Renato (Renato Ferracini) que é um outro que está orientando um trabalho de pesquisa, misturando atores e bailarinos, ele orientando, tem uma coreógrafa orientando. Um cara que é um argentino fazendo um trabalho com dramaturgia em cima desses materiais que eles estão criando. E isso vai virar um espetáculo também! Mas nem sempre esses estágios viram espetáculos, às vezes é pesquisa pura, é trabalho de ator, é treino…
Pé – O que é o espetáculo “Kavka”?
Ricardo – O Kavka é assim… Primeiro, eu posso dizer que cada espetáculo nosso vem, como eu falei no final… Hoje trabalhamos com repertório e temos em média 12 espetáculos, e o ponto de partida para cada um deles é um impulso, um desejo por parte de quem vai fazer. No caso aqui é o meu. Então o Kafka é um autor que eu leio desde que eu era adolescente, desde que eu tinha 15 anos. E depois que eu comecei a fazer teatro, depois de alguns anos… Eu sempre tive na cabeça que eu queria construir um espetáculo com as histórias dele e com a vida dele. Misturando um pouco a obra e vida! Ele também foi um personagem interessantíssimo. E a obra dele é basicamente autobiográfica. Não de uma maneira clara, mas, de uma maneira poética. Mas ele escrevia sobre ele, sobre as experiências dele. Talvez todos nós façamos isso enquanto artistas, e eu acredito nisso. Então eu tento no espetáculo, pegar o Kafka que é o Kafka, o Kafka literário, digamos, ele como as figuras da obra, e também me colocar dentro disso tudo ai. Então, por exemplo, como o ator que faz ações, e a busca que eu tenho, como ator, de encontrar a ação precisa… Ação pode ser tanto física como vocal… É como ele fazia para encontrar a palavra exata. Ele tinha uma grande obsessão de buscar aquela palavra! Tanto é que escrevia, queimava, e nunca parava de criar. E para ele, o que eu acho pessoalmente, o ato de estar fazendo, treinando, criando um espetáculo, e depois de estar apresentando, por que um espetáculo nunca para de se construir e se modificar, por que ele é essa relação com o público. Essa busca é o que me move enquanto ator. É como eu consigo me colocar no mundo, dizer coisas pro mundo, usando as palavras do Kafka.
Pé – Era a próxima pergunta… E por que montar? Aonde você acha que se comunica com uma platéia? Como você julga essa platéia contemporânea para receber esse grau de angústia?
Ricardo – Certo! Eu vou dizer, falando especificamente desse espetáculo, que é uma coisa que… Como é que está chegando e como o espetáculo se relaciona com o público é meio novo pra mim.
Pé – O espetáculo tem quanto tempo?
Ricardo – Estreou dia 26 de abril! Fizemos 12 apresentações em Campinas. A gente gosta de estrear por ali, jogar em casa primeiro, antes de sair. Então aqui é a primeira vez que a gente saiu. E a estréia num contexto completamente diferente, por que agente estreou lá num barracão, mais ou menos do tamanho desse palco todo (do Sesc Santos), e a platéia no caso ficavam em arquibancadas muito próximas do ator. Quando eu ia pra frente ficava à dois metros do público.
PÉ -O espetáculo tem uma proposta mais intimista?
Ricardo – A proposta é fazer qualquer espaço! Por que, por exemplo, ele tem muitas nuances de voz. Então eu não preciso estar projetando a voz pra um espaço muito grande. Eu posso fazer muito pequeno, muito sutil, tudo mais delicado. Mas eu pessoalmente gosto de ter essa possibilidade de fazer para vários espaços, por que eu também sou palhaço. Basicamente o meu trabalho é com palhaço. E palhaço tem que fazer circo, rua, teatro grande, teatro pequeno, pra criança, e etc. Então foi pra mim, como você diz essa angústia… Eu acho que tem uma angústia, mas tem uma força de vida muito grande no Kafka pessoa, e no Kafka obra, escrito. Por que ele tinha um olho sobre o mundo, ele via o que estava acontecendo no mundo. Como se quase profeticamente ele conseguisse perceber, naquele início de século, pois ele morreu jovem, e ele conseguia ver no desenrolar das relações das pessoas, nas relações da sociedade, ele conseguia colocar em imagens o que foi acontecendo, sabe? A segunda guerra, a perseguição aos Judeus, pois ele era judeu, essa mecanização do ser humano, essa homogeneização, essa desvalorização do indivíduo, essa massificação, tudo isso acontecendo ali. E ele testemunhando, meio como que um pára-raio e botando na obra de uma maneira linda. Por que não é chato! Ele é extremamente criativo.
Pé – Quando li “Cem anos de solidão”, eu pensei: Eu quero fazer isso que esse cara faz. E Gabriel Garcia Marques, quando leu o Kafka, falou: Eu quero fazer isso que esse cara faz! E justamente no trecho que você citou hoje, que eu acho que é um dos melhores começos de Gregor Samsa é quando ele acordou e ele era uma barata. E esteticamente, como é o Kafka pra você?Ricardo – Bom, pra mim ele era expressionista, eu acho! É uma coisa de sombras que tem a haver com o lugar onde ele vivia. Em Praga daquela época, na Tchekoslovakia, na verdade era parte de um império austro-húngaro, não era independente, era uma cidade sombria, cinza, um inverno massacrante, as igrejas góticas, as ruelas… então ele era um ser noturno! Ele não dormia. O Kafka tinha uma insônia terrível e ele não dormia. Ele também escrevia a noite. Ele tinha quase que duas vidas, durante o dia era funcionário de uma companhia de seguros, extremamente formal, e de noite era o período que ele escrevia. Insônia brava, de sonhar e ter pesadelo acordado. Ele diz na biografia, e se fala sobre ele, por isso que eu imagino que o que ele colocou no papel era o que ele vivia nessas noites no quarto dele. Então a idéia segue por ai, um quarto esteticamente meio estilizado, que é um quarto/escritório, em que ele está ali vivendo, e a tuberculose lhe atacando… E uma coisa que eu ia falar antes, sobre o porque eu acho isso interessante… eu acho que o nosso mundo hoje foi cada vez mais por esse lado que ele viu lá, onde o indivíduo já não tem muito mais… Onde agente tem que ser igual. As pessoas têm que pensar igual, se vestir igual, serem iguais. E o Kafka, pessoalmente, o que ele fez a vida toda foi explorar e tentar desenvolver um potencial que ele tinha, que era o escrever. Então essa angústia dele era por isso. Por que ele conseguia, não conseguia. Por que ele se via nesse mundo, que pedia outras coisas pra ele, mas ele queria…
Pé – Ele faz um elogio à individualidade! É único…
Ricardo – É! E é essa busca dos potenciais. Por que agente é diferente! É, um pouco, de falar sobre as diferenças.
Pé – É até uma das bases do Lume!
Ricardo – Exatamente! É um das bases do Lume. Ele vai no ator, e eu sou de um jeito, o outro é do outro, e não tem um caminho, uma fórmula que vai servir para todos.
PÉ – Uma curiosidade! O que é a dilatação do ator?
Ricardo – A dilatação? Eu, por exemplo, quando estou atuando não estou de uma maneira que eu estou no cotidiano. Nem agora, que eu estou conversando com vocês, não estou normal. Eu já estou falando bastante! E eu não sou assim… Eu sou tímido, quieto, não falo muito. Então a dilatação é o ator seguir regras aqui no palco que não são as mesmas do cotidiano. Então, por exemplo, você vai parar, no cotidiano você para relaxado, aqui no palco você para diferente. Então você utilizar, por exemplo, um princípio técnico de um certo desequilíbrio, já cria uma certa impressão em quem está vendo. Só o fato de você fazer isso, essa presença cresce e é percebida de outras maneiras, não só racionalmente. Mas também visualmente, energeticamente. Essa palavra que é difícil, mas existe. Então é um pouco isso… É você ter um corpo que siga, que é um corpo artificial… Você não anda desse jeito, você não faz desse jeito, tem uma tensão, tem todo um trabalho de coluna, de abdômen, pra te dar uma carga diferente. Então a dilatação é mais ou menos isso!
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2 Comentários para “Entrevista com Ricardo Puccetti – Lume Teatro”
- 1 Pingback on jul 16th, 2008 at 1:55 am
Muito bom mesmo, mas, mudando um pouco, vi o Puccetti, certa vez, NO Parada de Ruja e, bh, na pça da liberdade, e ele, com um clarinete interagindo com o espaço da pça, ao vir uns meninos de rua, mira o clarinete sobre eles e, imediatamente todo o espaço se transformou, muito incrível e bonito
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